domingo, 12 de julho de 2009

"Escrever sobre as coisas que devem mudar o transforma

"A Beleza e o Inferno". É o resumo de sua obra jornalística de Salviano, um romance que dividiu sua vida em dois: sucesso e fama, medo e solidão. No prólogo, Saviano conta essa existência nômade e sem lar - dor, fuga e aprendizado, quartos de hotel, viagens velozes, tristeza e escrita - desde que foi ameaçado pela Camorra, e explica a origem do título, tirado de um trecho de "O Homem Rebelde", um ensaio de Albert Camus: "O inferno tem só um tempo, a vida um dia recomeça".Saviano sobreviveu graças à escrita, que o obrigou a renunciar à normalidade. Talvez por isso tenha enchido o livro de agradecimentos. Os amigos que encontrou nessa nova etapa são o motor das 250 páginas, desses textos exatos, arejados e apaixonados ao mesmo tempo. Textos justiceiros - ou militantes, se preferir -, Saviano sente-se à vontade entre os perseguidos. Mas escreve pensando nos leitores. Diz que essa é a única forma de calar os difamadores e os covardes. "Não quero escrever como os cínicos. O cinismo é a armadura dos desesperados que não sabem que o estão", explica.Os amigos novos, vivos ou mortos, têm algo em comum. São exemplares. Beppino Englaro, o herói que desafiou a hipocrisia dos ateus devotos; Miriam Makeba, a rainha da África que morreu em cena em Castelvoturno, território da Camorra; os boxeadores olímpicos do ginásio de Marcianise, que escapam da Camorra à base de suor; Anna Politovskaia, a jornalista russa assassinada para tapar sua boca; o músico Michel Petrucciani e o jogador de futebol Lionel Messi, dois doentes sublimes, entre a beleza e o inferno; e o infiltrado na máfia Joe Pistano, cuja história inspirou o filme "Donnie Brasco"...Em outubro, Saviano levará alguns desses textos e personagens ao Piccolo Teatro de Milão: "Sou um intruso no teatro, mas sinto a necessidade de me comunicar diretamente com os leitores", diz nesta entrevista em que reflete sobre a vida e o jornalismo.El País: A peça sobre Joe Pistano, "Donnie Brasco no cinema", é como um encontro com um professor...Roberto Saviano: Esteve infiltrado por seis anos no clã Bonanno, e graças a ele houve mais de cem detidos. Sua vida tem bastante a ver com a minha. Nos encontramos em Roma, em um restaurante, e ele me disse que devia ir sem escolta. Chegou e me disse: "É verdade que para ser italiano você é muito mal vestido". Via sua mulher e seus filhos só em agosto e no Natal. A cada frase fazia o sinal da cruz. Sua ideia para resistir é que ele estava certo e os mafiosos estavam errados.El País: O bem e o mal...Saviano: Camus diz isso de outra forma: para contar a realidade é necessário ter atravessado o abismo do inferno e ter o talento da beleza.El País: Messi e Petrucciani, por exemplo.Saviano: Dois anões que se transformam em gigantes. Petrucciani tinha uma doença muito rara, chama-se ossos de vidro. Seu avô era napolitano, e no inferno de sua condição encontrou a beleza, a força para ser melhor. Foi capaz de criar algo único. Não era um fenômeno de feira. Você escuta um disco dele e nota um talento infinito. O inferno melhorou seu talento, o levou a ser melhor. Tinha sempre ao seu redor um monte de mulheres, dizia que o deixavam porque as enganava. Era cheio de vida. Teve um filho e lhe transmitiu a doença. Explicou que havia tido uma vida maravilhosa e não tinha porque impedir que ele vivesse uma vida semelhante. Há um vídeo no YouTube em que seu filho toca piano sentado em seus joelhos. É como se fizessem amor, só que em público.El País: Então essa vida nova teve coisas positivas.Saviano: Conheci Salman Rushdie, e cada vez que tenho um problema lhe mando uma mensagem e ele me ajuda. Me diz que não faça de mim mesmo um mártir, que encontre garotas, que procure um exílio de ouro, que não me martirize para ser coerente com o personagem. Sempre lembrarei que quando estivemos juntos em Estocolmo disse que ainda leva por dentro as feridas que os colegas lhe causaram.El País: O pior é a inveja dos escritores?Saviano: O ódio nasce do fato de sentirem que você é diferente. Há políticos e escritores que acreditam que tudo é lícito e vivem na impunidade total. O mecanismo que me empurra a escrever é justamente o contrário do cinismo. Creio que é preciso mudar as coisas. Me nego a sucumbir ao conformismo. Eles sabem que a maior parte do país está do seu lado. Que ninguém sai para a rua protestar, que adoram ser representados por políticos que encarnam suas contradições. As pessoas sentem que Berlusconi tem os mesmos vícios e contradições que elas, por isso se sentem à vontade com ele. Se você tenta mudar isso, retira o sonho delas. A indiferença dos italianos, essa forma de se acostumar a tudo, contagiou a sociedade, os jornalistas, os líderes de opinião. Pensar ou escrever que as coisas devem mudar o transforma em um infectado. O chamam de inadaptado, dizem que está fora do sistema. Esse cinismo está devorando o país.El País: Por que não escrevem para os leitores?Saviano: Todo mundo fala para as elites. Como se já não se pudesse conquistar os leitores e a única forma possível de estar no mundo fosse falar para os colegas. Eu escrevo para o público mais amplo possível. Essa é a força que têm as palavras sobre os criminosos. Miriam Makeba, que veio a morrer sobre um palco em um povoado imundo dominado pela Camorra, cantor nessa noite para 30 pessoas. Para ela dava na mesma que o teatro estivesse cheio ou vazio, veio para as prostitutas nigerianas porque eram sua gente.El País: A lista de agradecimentos do livro é enorme.Saviano: São todos os que me ajudaram. No início não sabia como isso acabaria. O ódio político, o risco de queimar-se... Só tinha os policiais, e pouquíssimos amigos. São os que me deram gasolina para aguentar e evitar erros. No princípio era muito frágil, aprendi a me construir. Dar os nomes é uma forma de homenagem, e ao mesmo tempo o relato de um país diferente. Não existe só o que olha para o outro lado. Há pessoas magníficas.

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